20 de mar. de 2010

Epitáfio

"A lua cheia não ilumina tanto aqui dentro e creio que nunca mais verei a luz. Nunca mais"

Eu nunca gostei do que eu faço. Infelizmente, sou o melhor. Nunca tive prazer em matar pessoas, mas minha ambição por ouro sempre foi maior. Sofrimento, medo... Não eram coisas aplicadas aos meus atos, tudo era rápido e rasteiro. Talvez seja isso que me torne o melhor.

Eram muitos os que me procuravam para solicitar meus serviços como mercenário, minha fama no submundo é demasiado grande. Eu realmente sou o melhor, eu sei disso, mas nunca me importei com isso, só me preocupo em fazer meu trabalho e pegar meu ordenado e gastá-lo com bebidas e mulheres.

Hoje eu estou em uma choupana abandonada em meio a uma plantação morta, tentando tratar meus ferimentos, mas reconheço que, por mim só, não sairei daqui com vida. Não receberei a outra metade das moedas de ouro de ordenado. Estou escrevendo em um caderno que já tem as páginas amareladas e com um pedaço de carvão que encontrei em meio à palha que cobre todo o chão. Fiquei imaginando por um tempo o que levou as pessoas que viviam aqui a abandonarem esse local.

Creio que em algumas horas eu não conseguirei mais escrever, pois já vejo o sol baixando, cedendo lugar à lua, que apareceria daqui algumas horas. Talvez fosse ela quem seria testemunha de minha morte, assim como os insetos que me parecem já estar a espera do meu cadáver para alimentarem-se.

Nem mesmo minhas armas estão comigo, talvez se eu estivesse com elas agora, eu estaria morto. Eu não tinha tempo para recolhê-las e sair vivo da emboscada a qual fui submetido. Ainda não consigo acreditar em como conseguiram me pegar. Mas vou escrever sobre o acontecido. Talvez alguém um dia encontre essa mesma choupana e leia minhas palavras. Mas vou escrever, pois isso sempre foi uma das minhas paixões e como tenho registradas todas as minhas missões, quero registrar a minha última... A minha única falha.

Eu estava bebendo, não me lembro o nome da taverna, mas sei que já estive lá outras vezes. Um homem me contratou, oferecendo-me uma quantidade de moedas que eu nunca tinha visto juntas. Mas não uma missão como as outras, eu tinha que dar fim à uma caravana, ele não tinha o número exato de pessoas envolvidas, mas eu devia destruir a mercadoria e o encarregado dela. Como eu não o conhecia, ficou decidido que eu mataria a todos ali.

Peguei algumas moedas com antecedência, o suficiente para eu ter tudo o que precisava. Não sou um exímio espadachim, por isso devia investir em armadilhas. O contratante sugeriu que eu contratasse mais homens, mas eu trabalho sozinho. Antes eu tivesse dado-lhe ouvidos...

Aproveitei as moedas a mais para comprar uma espada nova que vi em uma ferraria. Minha adaga de prata ainda era a arma que eu mais gostava – e realmente era a mais eficiente em minhas mãos – mas uma espada é sempre útil. Eu já tinha um bom arco, comprei apenas algumas flechas e bugigangas para armadilhas.

Dormi em uma hospedaria luxuosa, fato raro em minha vida. Era demasiado cedo quando acordei e deixei o lugar. Cavalguei durante meio dia até chegar à estrada onde a caravana passaria. Aprontei várias armadilhas, mas nada que fosse ativado por qualquer um que passasse, pois isso seria loucura.

Foi quando encontrei uma enorme árvore e um galho demasiado grosso e firme bem no alto. Decidi que eu montaria meu acampamento lá em cima. Deixei meu cavalo a uma boa distância dali, perto de um rio, onde ele teria água e comida a vontade. Logo estava em cima da árvore, após uma escalada que não exigiu muito de mim.

O sol recolheu-se, dando lugar para a lua governar os céus. Era uma noite de lua cheia, por isso não precisei acender nenhuma fogueira. Mas talvez eu não tenha acendido mesmo que a lua fosse outra, pois isso revelaria o meu esconderijo. Enquanto anoitecia passaram alguns cavaleiros e mascastes, mas nenhuma caravana com as descrições do meu alvo. Peguei uma garrafa de rum e comecei a beber, à espera de algum sinal da caravana.

Não passou nada além de um grupo de cavaleiros demasiado apressados. Cochilei sem querer e acordei com a queda da minha garrafa, que se espatifou no chão, derramando todo o líquido nas raízes da planta. Trovejei quanto aquilo, pois eu só teria outra garrafa em meu alforje, o qual havia deixado perto de onde amarrei meu cavalo.

Acordei novamente com o sol batendo em meu rosto. Não lembro de quando havia dormido e pensei que poderia ter deixado a caravana passar. Mas logo desconsiderei, pois a estrada não parecia estar surrada por uma caravana. Desci da árvore, e fui para onde meu cavalo estava, pegando pão, mel e a outra garrafa de rum em meu alforje, fazendo um rápido café da manhã, voltando à árvore logo.

Fiquei ali por um bom tempo, já se aproximava do meio dia e apenas alguns viajantes passaram. Foi quanto ao longe vi um grupo pouco maior que qualquer um que passara ante a mim antes. Verifiquei com minha luneta e conclui que aquele era meu alvo. Era a caravana, que vinha com cinco cavaleiros fortemente armados a alguns metros a frente de uma carruagem com alguns cavaleiros em volta. Logo atrás dois carros de bois vinham com couro mal curtido tapando – e talvez protegendo – a mercadoria, que eu realmente desconhecia e nem tinha muita curiosidade em saber o que era.

Pensei por alguns minutos e decidi minha estratégia. Deixaria os cavaleiros da frente passar sem lhes fazer nada, pois cavalgavam bem a frente, como batedores. Travaria a carruagem com estacas de madeira, enquanto os cavaleiros em volta da carruagem seriam atingidos por saraivas disparadas por armadilhas presas nas árvores. Enquanto isso daria cabo aos dois cavaleiros, cujos cada um seguia um carro de boi, com flechas que eu dispararia de trás de alguma árvore. Depois sacaria minha espada e mataria qualquer um que insistia em viver, além de quem estivesse dentro da carruagem, meu possível alvo principal.

Era o plano perfeito. Se nenhum dispositivo falhasse, eu teria meu ordenado rapidamente. Instalei o dispositivo que acionaria as estacas mais ou menos onde calculei que a carruagem passaria, chequei as saraivas, que seriam ativadas por mim ao cortar uma corda, e esperei atrás da uma árvore. Logo pude escutar o barulho dos cavaleiros que vinham à frente, que passaram rapidamente ante tudo aquilo, sem suspeitas.

Esperei por mais tempo que havia calculado, talvez os cavaleiros houvessem acelerado ou a caravana estava em trote mais lento que antes, mas logo senti a presença do meu alvo. Saquei minha adaga, já com o arco em mãos, preparado para cortar a corda, acionar as saraivas e logo atirar contra os cavaleiros.

Ao passar pela ripa de madeira, o peso da carruagem acionou as estacas em efeito balança, ferindo os cavalos e travando as rodas da frente. Cortei a corda e deixei a adaga cair no chão, sacando uma flecha e atirando contra o primeiro cavaleiro, que caiu do cavalo com a flecha no ombro, saquei uma segunda flecha e atirei contra o segundo cavaleiro, acertando-o no peito.

Saquei uma terceira flecha por instinto, mirando para a carruagem, onde vi que as saraivas derrubaram cinco dos sete cavaleiros. Atirei contra outro, fazendo-o cair do cavalo e deixei meu arco cair no chão, sacando meu machado de arremesso que pendia em minha perna, arremessando contra o cavaleiro que avançava contra mim, acertando-lhe em cheio a cabeça, ultrapassando o elmo.

Puxei a espada da bainha e fui andando até a carruagem, olhando para os corpos no chão, vendo se estavam realmente mortos. Abri a porta da carruagem com violência e não havia ninguém lá. Aquela era a única porta e eu tinha a certeza de que ninguém havia saído! Foi quando senti uma flecha acertando-me as costas. Virei-me por reflexo, vendo três arqueiros mirando em mim por detrás das árvores onde eu estava. Pulei para trás da carruagem, tentando ser mais rápido que os meus inimigos, mas senti uma flecha perfurando minha coxa, o que atrapalhou minha queda planejada, batendo meu braço em uma pedra pontiaguda que me causou uma dor imensa.

Vi por debaixo da carruagem que quatro homens vinham em minha direção e, quando olhei para frente, para as árvores do outro lado, vi mais alguns homens se movendo e vi uma flecha vindo em minha direção. Por sorte me movi a tempo, esquivando-me do golpe, levantando-me rapidamente, mesmo com as dores, correndo para as árvores, tirei o meu outro machado de arremesso e lancei contra o arqueiro, acertando-o em cheio.

Senti que os quatro homens corriam em minha direção, enquanto entrava na floresta, golpeando um dos dois homens armados com espadas. O outro saltou em minha direção e me feriu o rosto e eu, por minha vez, cravei minha espada em seu peito.

Os outros quatro homens já estavam na floresta e um deles me atacou com sua lança, eu rolei no chão, me esquivando do golpe e peguei uma espada no chão, girando-a contra o homem arrancando-lhe um braço. Foi quando senti mais uma flecha atingindo-me, acertando minha barriga. Isso me fez cair de joelhos devido a dor, mas não cedendo o combate.

Já não sabia quantos homens haviam contra mim, mas sei que outros dois homens se aproximaram de mim e eu lhes derrubei girando a espada, que ficou cravada no peito do segundo guerreiro. Já não havia como eu lutar, estava desarmado e fraco. Isso me fez recuar.

Corri pela floresta, eu estava sangrando muito e, a todo momento, sentia eles me seguindo. Várias flechas eram disparadas, mas nenhuma chegou a me acertar. Consegui me localizar depois de um momento, passando pela grande árvore na qual passei a noite e, depois de alguns instantes, cheguei onde havia deixado meu cavalo. Como eu já esperava, ele estava morto, peguei o alforje, que estava intacto onde eu o havia escondido e corri para o rio que corria ali perto, pulando nele e deixando a correnteza forte me levar, segurando no alforje que boiava.

Senti uma última flecha penetrando meu ombro e pude ver que eles corriam na minha direção, seguindo o rio. Eu não conseguia nadar e mal me mantinha acordado naquele momento. Foi quando vi uma pequena praia, a qual tive que fazer um pequeno esforço para chegar, pois a correnteza me levava para outro lugar, como em delta.

Arrastei o alforje, quase não conseguindo andar, avistando uma pequena choupana, para onde fui andando, e me serviu como abrigo até agora. Senti falta da maioria das coisas que estavam em meu alforje, como alguns medicamentos e comida e, o que sobrou, estava molhado. Retirei as flechas, mas não tenho nada para estancar o sangue, principalmente do ferimento de espada em meu rosto que fez pingar algumas gotas de sangue sobre esse livro.

Já é noite e, desde que comecei a escrever, meus ferimentos continuam sangrando e a dor é insuportável. Eu sinto frio. Mais frio que antes. Minha mão treme e escrevo devagar, com uma letra feia. A lua cheia não ilumina tanto aqui dentro e creio que nunca mais verei a luz. Nunca mais.

Se alguém encontrar esse livro, em meu leito de morte, procure por um homem com a barba feita e cabelo curto, dono de uma taberna, cuja eu não sei o nome, na cidade mais próxima daqui e entregue esse livro. Ele vai saber quem me contratou e talvez te conte quem eram aqueles homens e o motivo de desejarem minha morte. E realmente conseguiram.

Mario Gobbo

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