“Pois só há um meio de acabar com uma guerra. Vencendo-a”
Vários anos após a queda dos Taladin – o que significa um piscar de olhos para os deuses – o deserto de Denália mudou completamente. Aquela grande potência já não existia mais, o glorioso império imortal, ironicamente, caiu. A água sagrada se tornou profana, a vida se tornou morte. Ou coisa pior.
O povo protegido pelo Deus da Morte, aquele que fechou os portões de seu mundo tenebroso aos Taladin, deixou de existir. Ele não poderia tomar a vida daquele povo, aqueles a quem ele mesmo entregou o dom da imortalidade. E o maior dos dons Taladin se tornou sua maior maldição. Eles não podiam morrer, mas o deserto não os deixaria viver. A vingança estava feita. A Vingança Rubra.
A grande cidade foi tomada pelo Deus do Deserto que, por sua vez, inundou-a de areia, enterrando-a para sempre. Junto com ela se foi seu povo imortal, cujas vidas foram ceifadas pelo Deus do Abismo, aquele que não leva corpos, apenas destrói a alma. Corpos vazios. É o que ele deixa. E assim foi com os Taladin.
As tribos aliadas ao grande império caído foram aos poucos se extinguindo. Eram caçados e escravizados pelos nômades. Logo grandes tribos servas do deserto surgiram. O Deus do Deserto estava feliz por ter sua vingança, ao ver que o povo da planície havia desaparecido e que, no seu deserto, havia apenas o deserto. E seus servos.
Poder. Os nômades descobriram o significado dessa palavra ao estabelecer grandes tribos próximas aos oásis antes pertencentes aos aliados dos Taladin. Começaram a construir e a usar edificações como forma de defesa. Em pouco tempo grandes cidades surgiram em meio ao deserto. E um novo intermédio divino acontece. Guerra.
Cidades começaram a atacar outras, iniciando expansões. As areias do deserto foram manchadas de sangue. O território protegido pelo Deus do Deserto foi tomado pela guerra, se transformou em campo de batalha. O território agora dava poder a outro deus. O Deus da Guerra.
O Deus do Deserto se enfureceu. Seu maior aliado em sua vingança era seguido pelo seu povo. Mas ele não ousaria desafiá-lo. Não enquanto ele estivesse com todo aquele poder. Ele precisaria de aliados para voltar a reinar sobre o deserto. E novamente, os deuses conspiram. E intervêm no mundo humano.
Esperança
Era noite, Jafh-oel voltava para casa depois de passar algum tempo fazendo a guarda da aldeia, cumprindo seu turno. Sua mãe, Jaq-el, já dormia. Ele colocou sua lança de pé ao lado da porta, assim como seu cinto onde pendia a cimitarra. Comeu alguns pedaços de pão que sua mãe havia deixado para ele e logo foi deitar.
Os rumores da queda dos Taladin eram temidos por todos da tribo de Jah-fa, por isso a vigilância foi dobrada. Os homens estavam sempre preparados rondando a cidade, temendo um ataque. E ele aconteceu.e foi naquela mesma noite.
Tochas foram avistadas. Os homens se colocaram em prontidão. O grito de guerra foi ouvido. Eram os nômades. As primeiras linhas de defesa logo caíram e os servos do deserto já ateavam fogo na pequena tribo. Jafh-oel se levantou ao ouvir gritos. Correu até sua cimitarra, desembainhou-a e correu para fora de sua casa, onde viu a destruição tomando seu lar.
Jafh-oel derrubou três homens em pouco tempo, mas via que o seu povo não iria sobreviver. Mesmo assim ele seguia a lutar, ferindo vários adversários, usando, além da sua cimitarra, uma outra tomada de um inimigo abatido. Girava as duas armas com velocidade, se mostrando valoroso em combate. Mas apenas um homem não pode vencer um exército. Não sem a ajuda dos deuses. E eles não ajudaram. O Deus da Morte assistia a tudo, mas nada pôde fazer. Não ainda.
Uma flecha acertou Jafh-oel, derrubando-o. Logo uma lança era cravada em seu corpo, o tirando de combate. E por alguns instantes pensou que havia morrido. Talvez tenham sido alguns dias. A tribo de Jah-fa agora não existia mais. Os que lutaram morreram, os que se mantiveram vivos não tiveram a mesma sorte, foram levados como escravos para algumas das cidades que surgiam em meio ao deserto.
O rapaz acordou, seu corpo estava quase todo coberto por areia. Depois de algum esforço conseguiu se levantar, vendo as casas destruídas e muitos corpos na areia, sendo engolidos pelo deserto. Ele não entendia o porquê de estar vivo, sua roupa estava manchada de sangue, mas não haviam mais feridas. Não, humanos não entendem os planos divinos.
Jafh-oel andou em meio à destruição e viu muitos dos que viviam com ele mortos. Chorou ao ver o corpo de sua mãe já sem vida. Não tinha em mente o que fazer. Foi quando avistou um camelo já armado. Achou estranho, pois os camelos eram valiosos demais para um estar ali abandonado. Ele não imaginava que era um presente de seu pai, aquele que ele nunca conheceu. O Deus da Morte.
Ele se aproximou do animal aos poucos, observando ao redor, vendo se o possível dono não estava por ali. O camelo não saia do lugar, parecia esperar por ele. E realmente estava. Jafh-oel encontrou o corpo do líder da tribo de Jah-fa, um velho guerreiro que estava com o corpo coberto por feridas. O rapaz recolheu seu chicote, o que o homem sempre usava com muita habilidade, assim como sua cimitarra, aquela que sempre foi empunhada pelo líder da tribo.
Ao se armar, chegou ainda mais perto do camelo, que se mantinha imóvel. Em seus alforjes havia pães e água. O guerreiro se alimentou e logo montou naquele incrível jamal, cujo nunca havia visto igual, nem se quer parecido. E se colocou a viajar pelo deserto, sem direção. Não uma direção humana...
Assim como a aldeia de Jah-fa, muitas outras foram tomadas, completamente destruídas. Seus habitantes, quando não eram mortos, eram escravizados. Tudo isso apenas fazia as cidades crescerem e se tornarem cada vez mais poderosas. E nenhum poder era suficiente, os povos do deserto, que já não eram mais nômades, queriam mais.
Grandes impérios foram erguidos em pouco tempo, o avanço dos que conseguiram sobreviver aos campos de batalha era surpreendente. Batalhas de escala cada vez maiores eram travadas, nenhuma cidade podia mais ser destruída em uma só marcha.
Assim, aquele povo negou seu deus. O Deus do Deserto foi deixado de lado. Aquele que havia os dado seu terreno foi trocado pela sede de poder, pela estratégia, pela forja de metais. As tropas passaram a clamar ao Deus da Guerra que, como benção, enviava conhecimentos de estratégia e maquinário aos soldados. E todos clamavam, todos possuíam as melhores artimanhas divinas. Por isso nenhum deles nunca venceria. Pois quanto mais uma batalha se prolonga, quando mais sangue se derrama, maior é o poder do Deus da Guerra. E ele intervinha de modo que as batalhas nunca terminariam.
Os fundamentos de aliança não eram aceitos entre o povo do deserto, um não queria ter o próximo como amigo, queria as terras e armas deste. A ambição humana se tornou grande demais. E a ambição divina aumentava proporcionalmente. O Deus do Deserto diminuía no panteão, sua influência era cada vez menor, enquanto o Deus da Guerra se tornava tão forte e poderoso que era possível o comparar com os deuses do Tempo, da Morte e da Vida.
Os filhos do deserto perceberam que as guerras pelos mares de areia não eram proveitosas, já que os inimigos eram de mesma valência. E descobriam povos mais fracos. Em pouco tempo as tropas do deserto se moviam para a planície, tomando algumas cidades. As edificações eram completamente diferentes, para eles, aquele era outro mundo. Ali não se precisava de um oásis, pois havia rios cujas águas nunca se esgotavam. E com os escravos do povo da planície aprenderam a agricultura. O povo cresceu e o território não era mais suficiente. E logo mais terras eram tomadas. Os protegidos do Deus da Guerra avançavam sobre cidades, tomando tudo. Aquele povo agora era temido, eles pareciam ser invencíveis.
Nenhum deus queria ver o mundo entregue a destruição, mas eles não podiam lutar diretamente contra o Deus da Guerra. Era hora de mover peças no mundo humano. Um novo povo deveria surgir, profecias teriam de se cumprir, tudo isso para impedir o caos vindo da guerra. E só há um meio de se acabar com uma guerra. Vencendo-a.
Jafh-oel viajou por três dias até chegar a uma aldeia destruída. Seus suprimentos haviam acabado há algumas horas. Ele reconheceu aquele rastro, viu que o mesmo exército que havia destruído sua aldeia passou por ali. Casas destruídas, pessoas mortas. Nenhum sobrevivente. Não ali, não livre.
O rapaz encontrou alguma comida e água. O suficiente para mais uns dois dias de viagem. E assim se fez, viajou por muito tempo, enfrentando o deserto que, por sua vez, não via perigo em um viajante solitário. Sobreviveu da pilhagem mal feita das tropas do deserto, sempre encontrando algo em pouco tempo de procura. E assim se manteve de pé por um mês. O mais longo de sua vida.
Ele teve de fazer uma escolha ao avistar uma colina coberta de grama. Continuar no deserto, sobrevivendo das aldeias destruídas, ou ter a chance de finalmente viver de outra maneira, partindo para a planície. E a segunda opção parecia mais interessante. E seu camelo o guiou para lá, mesmo antes de Jafh-oel indicar o caminho.
Atravessou a colina, avistando um novo mundo. Era tudo coberto de verde, cor que ele pouco conhecia. E viu também um rio. Era a maior quantidade de água que ele já tinha visto. E, surpreso com aquele mundo, não percebeu que o camelo continuava o guiando. Parou no rio, onde se banhou e encheu seu cantil. Comeu algumas frutas das árvores que havia ali. Estava no paraíso.
Jafh-oel pôde ver uma cidade logo à frente, para a qual se dirigiu. Ele jamais tinha visto construções grandiosas como aquela, apenas tinha ouvido falar da grande cidade Taladin, mas nunca pôde vê-la. Suas roupas desérticas o incomodavam e seu camelo parecia estar estranhando aquele clima. O rapaz era muito mais inteligente que qualquer nômade, por isso, observando um pequeno mercado, aprendeu a negociar. Vendeu o incrível animal a um senhor que desejava atravessar o deserto por boas trezentas moedas de ouro. Seu pai ficou feliz, pois o camelo não seria útil na planície. Assim foi melhor para Jafh-oel e para o animal.
Logo comprou roupas novas e se alimentou bem. Passou algumas noites descansando em uma hospedaria, comprou um bom cavalo e suprimentos para a viagem. E ainda lhe sobraram trinta peças de ouro. O suficiente para ele passar por várias cidades. Enquanto isso o Deus da Morte apenas o observava, admirando seu filho. A sua peça mais importante contra o Deus da Guerra.
O guerreiro continuou viajando pela planície, conhecendo aquele novo mundo, adquirindo conhecimento. Mas logo encontrou em uma grande cidade um motivo para se fixar ali. Um velho sábio profetizou que seus últimos dias seriam usados na instrução do forasteiro que veio do deserto, o último de um povo. Jafh-oel se intitulou o último dos Jah-fa. Mas na verdade, era o último Taladin.
E foi o que aconteceu após o velho reconhecer o garoto como o sinal divino, o instruiu em línguas, comércio e estratégia. Ele ensinou tudo o que sabia por vários anos, passando todo seu conhecimento ao jovem que se mostrava um grande discípulo. O rapaz se tornou homem e o velho se tornou pó. Homens não vivem para sempre. Não homens comuns. Jafh-oel agora era notável na cidade por seu conhecimento, logo sendo nomeado conselheiro do rei. Aquela grande cidade comandava várias outras e por vários anos Jafh-oel se manteve ao lado do governante da região, aplicando seus conhecimentos.
Até chegar a notícia de que tropas do deserto se moviam ofensivamente pelas planícies.
Continua...
Mário Gobbo.
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